Verbo: transitar

Lu Terceiro
6 min readFeb 25, 2023

--

Há cinco anos atrás, eu decidi mudar de país. Sair do Brasil era uma vontade antiga, desde meus tempos de adolescência. Sempre tive muita curiosidade de experenciar, de vivenciar outras culturas. Como seria trabalhar, estudar, enfim, levar uma vida em outro lugar?

Quando a oportunidade apareceu, não pensei muito não. Eu sei que era uma mudança grande mas eu sempre tive em mente que se tudo desse errado, ou se a vontade assim fosse, eu poderia voltar para casa. O que eu poderia perder?

Sempre fui inquieta e curiosa. Sou do tipo que gosta de se jogar em coisas novas. Provavelmente por isso fui acabar trabalhando com tecnologia. Adoro aprender — quando pequena, minha mãe sempre dizia que eu “adorava uma novidade”. Quando uma descoberta me levava a outra, e outros mundos e possibilidades se abriam, eu sempre sentia uma empolgação natural de querer saber mais, numa mistura de surpresas e acasos com uma certa intuição de que aquilo era algo que valia a pena ir atrás. Você também já deve ter passado por várias situações assim e que, quando olhou para trás, percebeu como uma coisa levou à outra, numa linha para lá de não-linear, mas que olhando em retrospectiva faz todo sentido.

Mudar de país foi mais ou menos desse jeito. É claro que não apenas a intuição entrou na balança, mas muita pesquisa. O que seria essa vida? Que mudanças isso significaria? Como seria viver em um outro lugar? De mala e cuia, fomos a família toda para as terras frias da Suécia.

Depois da mudança me dei conta que não havia pesquisa o suficiente que pudesse me explicar o que seria estar vivendo em outro lugar. Só estando lá para entender que, das pequenas às grandes (às vezes imensas) questões da vida, tudo teria que ser basicamente aprendido quase que do zero. Lembro quando na minha primeira semana de casa nova fui ao supermercado comprar cereal. Meio mambembe, de Google Translator em mão, obviamente levei o produto errado. E não foi a única vez que algo não saiu bem como esperado — mas depois dessa aprendi qual cereal eu deveria comprar 😄 Coisas muito básicas tiveram que ser (re)aprendidas. Logo que mudei, em pleno dezembro, passei duas semanas estudando roupa de frio para crianças. Roupa para neve, roupa para frio e chuva, roupa só para chuva, quantas camadas, quais tipos de sapato. Se isso aconteceu para coisas tão banais, imagine quando parei para pensar na vida profissional?

Boro, o tecido da vida

Mas antes de continuar, eu queria contar um pouco sobre o boro. E você me pergunta, que raios é o boro? O que ele tem a ver com esse texto?

Boro é uma antiga prática japonesa de remendar e reparar roupas que iam se desgastando com o tempo. As roupas remendadas podiam durar muito tempo, graças às várias camadas de tecido eram eficientes para aquecer no inverno, e eram passadas de geração para geração. Feita numa época onde boa parte da população vivia com recursos escassos, foi abandonada próximo ao século XX. Há mais ou menos um ano atrás, um museu local trouxe uma exposição sobre a prática, onde eles descreviam os tecidos boro como a arte de sobreviver com parcos recursos em um ambiente inóspito. O boro pode parecer um patchwork, mas diferente dessa técnica que é muito mais planejada e exata, o boro é caótico, imprevisível, depende do tempo e do acaso.

Guardadas as devidas proporções (não quero subentender que são literalmente as mesmas condições), o boro me pareceu uma boa metáfora para as mudanças da vida, para o que somos, que vamos transitando por ai, colecionando experiências, e nos transformando nesse caminho.

Cada boro é único. Ou, seu caminho é só seu

Não era a primeira vez que eu resolvia repensar minha carreira, mas dessa vez foi uma parada, uma reflexão não-planejada. Se por um lado eu achava que, após a mudança, iria colocar um portfolio e um currículo embaixo do braço e ir atrás de um emprego, de repente eu me dei conta que não seria bem assim. Mudar significou não ter mais a rede de contatos, de amigos e de apoio. Mudar significou ter que explicar quais empresas eu tinha trabalhado no Brasil, onde tinha estudado, para ouvidos céticos que não conheciam nada do que eu estava falando. Mudar significou ser mais uma mulher latina em um país diferente, com toda a resistência e preconceito que alguns demonstravam.

Eu levei um bom tempo até perceber o tamanho da síndrome de impostora que eu desenvolvi, porque havia tanta dúvida sobre meu potencial, que nem eu mais sabia exatamente do que era capaz. A gente já convive com a síndrome do impostor regularmente, mas quando o nível de desconfiança sobre você e seu potencial sobem às alturas, essa síndrome ganha contornos paralisantes. Eu levei muito tempo para ter uma certa consciência do que aconteceu, e até hoje passo por isso.

[…] a formação da identidade emprega um processo de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como outros o julgam, em comparação com eles próprios e com a tipologia que é significativa para eles. (Erikson, 1976, p. 21 — grifos da autora).

Mudar também me forçou a pensar e repensar muito sobre minha carreira. Certas opções que me eram óbvias deixaram de ser, e às vezes arriscamos mudanças que parecem contra-intuitivas. Quando escolhemos direções que “quebram” uma lógica aparentemente linear, muitas vezes em vez de suporte recebemos questionamentos. No Brasil, trabalhei alguns anos liderando times de design. Após mudar, decidi passar um tempo como “individual contributor”, como eles chamam por aqui. Ou, em bom português, eu estaria trabalhando dentro de times como designer. E depois de passar um bom tempo trabalhando em uma empresa, decidi fazer algo por conta própria, ser independente. Apesar de não ter nada de errado com nenhuma dessas opções, e embora nada seja definitivo, várias vezes percebi na reação das pessoas como essas escolhas pareciam ilógicas. Assim como o boro, nem sempre podemos prever de onde vem os fragmentos do nosso patchwork.

Às vezes, o que a gente precisa é ver as coisas com um certo distanciamento. Um conjunto desengonçado de retalhos pode formar uma bela composição de longe. Provavelmente o momento mais importante para mim foi quando resolvi dedicar um bom tempo a repensar meu portfolio. O que começou com o objetivo de ter um material atualizado para aplicar para empregos virou um enorme momento de reflexão. Eu decidi documentar todos os projetos que eu tinha gostado de trabalhar. Projetos de trabalho, de estudo, pro-bono, eu quis relembrar todo o meu percurso. Cada quadradinho do meu boro estava lá. Ter esse momento serviu para dar um “chega pra lá” na síndrome da impostora, mas também para ter mais clareza do que eu realmente gostava de fazer.

Um tanto de craft, uma dose de imperfeição, um tanto de acaso

Não é preciso mudar para outro país para passar por situações parecidas. Mudanças, quaisquer que sejam elas, boas ou não tão boas, podem desestruturar a gente. Vão provocar questionamentos e reflexões. Esses ocasiões podem ser momentos incríveis de descoberta, mas só quem passou por momentos assim sabem das angústias que isso pode trazer. De fora, pode parecer bonito, mas só quem vê o avesso percebe o emaranhado de fios.

Diz o filósofo que a única constante da vida é a mudança. Algumas a gente mesmo provoca, outras vêm de encontro à gente. Quais serão as tecnologias dos próximos anos? Como elas irão se materializar? Como nossos ecossistemas irão reagir? Que mudanças tentaremos provocar? Para algumas perguntas, temos já hipóteses. E várias dessas, provavelmente, serão desmentidas.

Dessa experiência de mudanças e transformações, que ainda incluiram uma pandemia e outros desafios, eu digo que para o futuro, estejamos abertos às mudanças, sem perder de vista nós mesmos. Tal e qual o boro, vamos incorporando as novas partes, algumas vezes para reparar algo que passou, algumas vezes para fortalecer o tecido. Não ignoremos que cada um de nós somos uma composição única, e nisso reside nossa beleza e singularidade. Transitemos, então, já que as mudanças são inevitáveis.

Ilustrações da autora

Referência

Erikson, E. H. (1976). Identidade, juventude e crise. 2ed. Rio de Janeiro: Zahar.

--

--